Monday, May 17, 2010

A Síndroma do Cubículo

Uma secretária, com um computador semi-obsoleto. Formando um compartimento, três paredes de contraplacado, de cor perfeitamente descolorida – será castanho, cinzento, castanho com tons de cinzento, ou simplesmente fumo? – rodeiam o “espaço de trabalho”. Há quem tente colar fotos da família, dos animais de estimação, até mesmo postais e imagens imprimidas da net de praias paradisíacas algures na Tailândia. Contudo, por mais que se empurrem pionéses, ou se ponha fita-cola, todas elas tendem a escorregar, a cair, a desaparecer...

A empresa tem uma política de “clean desk”: isso quer dizer, em duas palavras, que o teu posto de trabalho não deve conter absolutamente nada que te distraia das tuas funções, ou que o personalize. Quando picas o ponto – ou biometricamente, indicas ao “chefe” que chegaste – e te sentas na cadeira, diante da tua imaculada secretária, eu vejo um cenário distópico, em que centenas de fios, cabos e fichas se ligam ao teu corpo e, durante o tempo de expediente, te chupam até ser altura de voltares para casa. Bem-vindo ao cubículo!

É claro que esta imagem é um produto da minha imaginação, e foi apenas um estratagema para obrigar as pessoas a lerem e, quem sabe, verem a mesma coisa que eu vi enquanto escrevi estas linhas. O texto é meu, é a minha prerrogativa. Além disso, nos dias que correm, os pobres cubículos quase foram corridos dos escritórios modernos, fisicamente falando. No entanto, continuam a existir fantasmagoricamente, aprisionando os cérebros das pessoas ao trabalho monótono, repetitivo, escravizante. O que é que mudou desde os tempos feudais, em que uma família de camponeses trabalhava de sol a sol para um nobre, geração atrás de geração? Mudaram as constituições, as declarações dos direitos do homem, da mulher, da criança, menos uma coisa: o mundo interior das pessoas continua a girar à volta do trabalho, da função que desempenham. Para outrém, até que venha alguém e substitua a anterior roda dentada da maquinaria. E isto não porque a dita peça se avariou: é só porque sai mais barato.

No primeiro mês no novo trabalho – convém dizer, hoje em dia não há empregos, porque somos quase todos mal-empregados, mas trabalho temos imenso – esforçamo-nos por nos integrarmos. Queremos entender o que estamos ali a fazer, com quem o estamos a fazer, olhamos por cima do cubículo imaginário e galamos o(a) colega jeitoso(a), ouvimos falar do(a) outro(a) que é um(a) graxas, dos que trabalham, dos que fingem que trabalham, e das vidas alheias, umas mais trágicas do que outras, e que não nos dizem respeito. Mas, claro, isso faz parte do trabalho.

O “chefe”, que ninguém sabe quem é, mas que se encontra personificado em uma ou mais personagens que instilam um misto de autoridade com espírito de camaradagem, não manda: pede. Não exige: mede o que se faz através de números e de rumores. Nunca despede: faz o que o “chefe” acha melhor para manter o corpo vivo, o que pode implicar cortar um dedo. Um dedo com despesas, família, aspirações, e cuja personalidade foi, entretanto – e convenientemente, aspirada pela empresa.

Tentamos separar as águas, deixar o trabalho onde ele tem de estar, e voltar para a vida que tínhamos antes do trabalho. Tentamos compartimentalizar – cubicularizar? – os assuntos, as preocupações, as crises, os enganos, o stress, e os medos. Eventualmente, estamos a socializar com essas pessoas que, tal como nós, estão enfiadas nos cubículos fantasma, debatendo o trabalho, a falta dele, as dificuldades, os amores e os desamores, e cada vez mais alienando quem não está dentro das três paredes connosco. A figura paternal do representante do chefe vai promovendo a cubicularização, com jantares, fins-de-semana temáticos, seminários, confraternizações e afins.

No dia em que somos substituídos por uma roda dentada nova, fresca, ingénua, pronta a explorar, é o dia em que acordamos para a realidade e nos damos conta de como as paredes do cubículo cresceram tanto, mas tanto, que nos rodeiam como se estivessemos numa praça. Não conseguimos ver para além das fotos das praias paradisíacas que imaginámos que, um dia, visitariamos. As tais que caem, porque não prendem nem colam, e ameaçam esmagar-nos como toneladas de cimento. Há cabos, e fios, e fichas, todos eles espalhados pelo chão fora, e percebemos que não só nos ligavam ao trabalho, mas também aos outros que o partilhavam connosco. Contudo, eles deixaram de nos ver, ou de sequer sentir a nossa presença. Afinal, não eramos assim tão importantes...

A tristeza da Síndroma do Cubículo é que é muito mais do que isso: é um sofrimento cíclico, que se repete tantas e quantas vezes formos usados e deitados fora, como peças defeituosas de uma engrenagem, ela mesma em constante processo de decadência e destruição. Tentaremos sempre personalizar o nosso espaço, a nossa vida profissional, mesmo que as ordem sejam “trabalha ponto final”. Tentaremos sempre aprender a gostar daquela família de desalinhados que se sentam nas mesas à nossa volta, porque assim tem de ser. Porque não o escolhemos, é só porque é assim. E acabaremos sempre a falar do nosso trabalho com eles e com os que amamos, porque, no fim do dia, é praticamente tudo o que nos deixam fazer.

O que me salva, quando penso nisto, é sentir nos olhares que se levantam dos cubículos o mesmo desejo e a mesma inquietude que eu sinto. E saber que um dia há-de haver tantas rodas dentadas defeituosas, que vai ser impossível substituí-las todas. Nessa altura, os cubículos vão acabar de vez...

Dedicado ao David Ançã – levou tempo, mas eu disse-te que ia escrever sobre isto. De uma roda dentada defeituosa para outra, cumprimentos!

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