Wednesday, September 30, 2009

Vermes

Eles andam aí... pessoas, independentemente do sexo, que mereciam estar na prisão. Não são psicopatas nem sociopatas, não são criminosos com cadastro, não têm um aspecto assustador como Cesar Lombroso os caracterizou no seu tempo, nem são aparentemente perigosos. No entanto, a natureza humana tem destas coisas, e todos nós o sabemos: dada a oportunidade, podemos tornar-nos autênticos monstros.

Lembro-me de estar em Santa Cruz, numa noite há muitos, muitos anos. Havia uma rapariga que costumava ver por lá, conhecida por não jogar com o baralho: envolvia-se em brigas, dizia coisas completamente sem sentido, e normalmente bebia tanto que acabava a vomitar em qualquer canto. Enquanto os meus amigos gozavam com ela, eu sentia pena dela e recolhia-me, não dizia nada. Se a visse tropeçar, era capaz de me rir, mas o meu instinto sempre me disse para me afastar dela, para não arranjar problemas.
Nessa noite em particular, tive de me meter.

A rapariga surgiu do nada, vagueando pela praia, vinda de uma zona deserta onde só havia rochas. Eventualmente, cambaleou um pouco e desmaiou na areia. O que eu vi a seguir foi inacreditável: uma série de bestas do sexo masculino foi a correr na sua direcção, e em vez de a ajudarem, começaram a tentar tirar-lhe a roupa. Suponho que o resto pode imaginar-se...
Ao longe, quando me apercebi do que se passava, saltei como uma mola da cadeira da esplanada onde estava, chamei toda a gente que conhecia e fomos a correr na sua direcção. Lembro-me de chegar ao pé dela, quase in extremis, e desatar aos murros e pontapés a todos os que estavam a tentar abusar dela. Nessa altura, não havia telemóveis, portanto era impossível chamar a polícia. Tivemos de tratar do assunto nós mesmos: eu, aos gritos, a bater em homens (coisas, quais homens?!) maiores que eu, outros a empurrá-los, e um vizinho meu a tentar ampará-la.
Nunca mais me vou esquecer do que é que um desses animais disse:

"Ela gosta..."

Nunca mais a vi, para dizer a verdade. Não sei o que é feito dela, e também é verdade que ela nunca nos agradeceu termos-lhe provavelmente salvo a vida.
Eu tinha 17 anos.

Aos 21 anos, quando estava a estudar na Holanda, aconteceu-me uma coisa muito parecida. Penso que alguém me meteu qualquer coisa na bebida, não sei. O que eu sei é que, apesar de estar acompanhada, e de conhecer a pessoa em questão, ninguém me ajudou. Tudo o que eu sei é que houve um momento em que a minha consciência se foi, e que assisti a tudo flutuando no tecto. Ele disse:

"Pensei que tu querias..."

Nunca mais me esqueci desse episódio, e racionalizei a coisa desta forma: se eu não estava "presente", foi como se não tivesse acontecido. E, muito embora, tenha a marca dentro de mim, consegui ultrapassar a cena. Acredito que, para cada besta destas, tem de haver uma boa pessoa por aí, e eu sei que isso é verdade. Pode ser difícil encontrá-la, mas as pessoas surgem na nossa vida quando mais precisamos delas.

Aos 29 anos, ia voltando a acontecer.
Ninguém me meteu nada na bebida, eu não estava bêbeda nem inconsciente. Foi tão simples como deixar entrar uma pessoa em minha casa que acompanhava uma amiga, com quem se tinha envolvido. Estava a dormir, quando senti um outro corpo deitar-se na minha cama. De repente, senti uma mão acariciar-me as costas. Daí, a metê-la por debaixo da minha camisola, foi um triz. Imediatamente, rebolei para o outro lado, e levantei-me, de punhos em riste. Olhei-o nos olhos, para que ele soubesse que eu tinha visto perfeitamente o que tinha feito. Ele levantou-se e foi para o sofá abraçar-se à minha amiga, como se nada fosse.

Por uma questão de incredulidade ("se calhar, percebi mal..."), não disse nada. Os dias passaram, e de cada vez que ouvia a minha amiga falar nele, as minhas entranhas revolviam-se, mas achei que não devia contar o sucedido. Como dizer a uma amiga que aquela pessoa, amiga de amigos de longa data, com uma profissão estável, extremamente educado, tinha feito o que fez?

Ontem, contei-lhe a verdade, que é como quem diz: lancei a bomba.

Como se não fosse suficiente, esta besta está prestes a casar-se. Uma amostra de homem, que de certeza que já fez bem pior do que tentou fazer naquela noite, vai-se casar com alguém que não faz a mais pequena ideia do que ele é capaz de fazer a mulheres indefesas, já para não falar na traição descarada de se ter envolvido com a minha amiga.

O que é que se pode fazer? O que é que se pode dizer? Absolutamente nada, porque a única prova é a nossa memória. Mas prometo uma coisa: enquanto esta pessoa existir, vou-lhe fazer a vida num autêntico inferno.

E, no fundo, isto explica o porquê de as pessoas estarem todas na defensiva umas com as outras: só vêem os vermes, e não acreditam que, por cada um deles, existe uma boa pessoa. Eu que o diga, porque até esta miúda começa a ver apenas vermes à sua volta...

Lamento...

Tuesday, September 29, 2009

Um post pessoal

Este texto é pessoal. Destina-se a partilhar com o mundo algo que me aconteceu, em jeito de terapia de grupo, mas também serve – espero eu – para ajudar outras pessoas que estejam a passar pelo mesmo. Portanto, bloggers detractores, podem ir para o próximo blog; dispenso as vossas críticas negativas.

Ontem à noite, tive uma crise de ansiedade grave.

Como sempre, desde há já muito tempo, deitei-me na cama sabendo que não conseguiria dormir, porque sofro de insónias. É impressionante como o cérebro é uma máquina tão potente, mas tão letal ao ponto de fazer com que o cansaço físico seja um mal menor, comparado com a torrente de pensamentos que nos atormentam. Há meses que, todas as noites, me deito e penso em tudo: no fim da minha relação, nos fracassos das minhas relações presentes, nos meus comportamentos, na falta de rumo geral da minha vida e nas coisas estúpidas que digo e que faço. Em certa parte, um dos defeitos das pessoas que sofrem de problemas de ansiedade e depressão é o perfeccionismo, e este costuma dar sinais de vida quando a pessoa precisa de descansar.

Ninguém nota, normalmente. Ando por aí, faço o que tenho a fazer, sou uma pessoa sociável, passo-me da cabeça como toda a gente, mas não dou grandes sinais de ter um desiquilíbrio químico. Oculto o facto de tomar uma medicação especial todos os dias, até porque se não a tomar não começo a espumar da boca, ou a matar pessoas. Simplesmente, fecho-me no meu mundo e sou incapaz de comunicar ou de me relacionar com quem quer que seja.

Sabendo a sociedade em que estou neste momento inserida – classista, preconceituosa, machista e conservadora – falar deste tipo de situações é quase um suicídio social. Isto quer dizer que, se eu me abrisse, haveria potenciais pretendentes que fugiriam de mim a sete pés, porque ninguém quer nada com uma rapariga com problemas. Sei que há amigos que rapidamente deixariam de o ser, porque ninguém tem pachorra para alguém melancólico e por vezes, imprevisível. No entanto, eu tenho de mandar essas coisas todas à merda, porque não sou hipócrita. O primeiro que nunca chorou, ou que nunca teve vontade de morrer que atire a primeira pedra. Se não o admitir, é porque é mentiroso.

Tomar decisões e fazer escolhas, como a que eu fiz há onze meses atrás, para alguém com as minhas características, é muito mais do que um desafio: pode ser um potencial salto para o abismo. Uma pessoa que sofre de depressão nunca deve deixar a estabilidade para trás, sob pena de perder a razão. O problema está em que eu sofro de depressão, mas sou demasiado rebelde e teimosa para aceitar uma qualquer estabilidade. O objectivo a atingir, aqui, é a felicidade, não o marasmo.

Nas minhas andanças nestes meses, enquanto alguém com uma sensibilidade fora do normal, tenho sido violentamente agredida: são os amigos que só servem para os copos e para as quecas; é o trabalho em que nos querem ver pela porta fora, por muito competentes que sejamos; é a falta de oportunidades para explanar o nosso potencial profissional; são os amantes que, eles mesmos não sabendo o que querem, não nos sabem certamente amar.

E, em certos momentos, não dá para aguentar. Uma pessoa tenta, engole, comporta-se de acordo com a situação, reclama, luta, não dá parte de fraca e, um dia, a máscara colapsa. É como estar-se entalado entre dois espelhos, sem escapatória, e tudo o que vemos é a nossa figura, de um lado e de outro. Bloqueados e manietados mentalmente.

Ontem foi o cúmulo. Nem sequer se pode dizer que tenha havido uma causa para, mas a acumulação de todas as dores foi demais. Eram cinco da manhã, não conseguia dormir nem parar de chorar. A opção mais racional que fiz foi vestir-me, pegar nas chaves do carro e ir a correr para casa dos meus pais, de onde escrevo estas linhas. Pelo menos, tenho um sítio para onde ir.

Estou melhor, mais tranquila e consigo ver as coisas com mais claridade. Vai ser a partir de agora que vou deixar a imagem de mim, naquela estação de comboios, cheia de malas, e com toda a minha vida dentro de caixas, e que a vou substituir por uma imagem de mim mais construtiva e real: eu mesma, ainda que isso implique afastar pessoas da minha vida. Afinal, penso que de estímulos negativos, já tive que cheguem...

Friday, September 25, 2009

Apenas Honestidade.

Está quase a fazer um ano que decidi mudar a minha vida para sempre. Na noite de 31 de Outubro, de certeza que me verão algures pelo Bairro Alto, a comemorar o facto de ter tido coragem para deixar para trás todas as coisas que tomava como certas. Uma semana depois, estava eu numa estação de comboios, cheia de malas, com tudo o que tenho dentro de caixas, indo para um destino incerto.

Lembro-me do medo que senti, e da incerteza de não saber se tinha tomado a decisão correcta. Mas também me lembro de pensar que, fosse o que fosse, eu tinha feito uma escolha escutando aquela vozinha dentro de mim. Ainda tenho dúvidas, e reconheço que tenho tido muitas dificuldades em adaptar-me. Em muitos aspectos, a minha vida actualmente está um caos: estar-se só pode ser uma opção, mas a solidão não o é. E não me refiro ao aspecto romântico da coisa, falo realmente do que é deixar-se tudo para trás, e ter de se recomeçar em todos os sentidos. O que nunca pensei foi que fosse mais difícil no sítio onde nasci do que no meu país de adopção.

Ás vezes, tenho sonhos que são como se a minha vida se tivesse fragmentado em duas: se nada tivesse mudado, teria sido bem sucedida como freelancer, teria casado no dia 7 de Julho deste ano, seria cidadã espanhola, e teria uma existência tranquila. Em certos aspectos, é como se essa vida continuasse, mas sem me ter lá.

Em onze meses, conheci muitas pessoas. A maior parte delas revelou ser como degraus num processo de aprendizagem que tem posto à prova a minha capacidade de me manter íntegra e fiel àquilo em que acredito. Como me disseram uma vez: "Você está de se apanhar do chão às colheres, claro que se vai rodear de pessoas que não lhe vão fazer bem!". Num plano abstracto, isto é verdade: colhemos aquilo que semeamos, e se semeamos ventos, decerto vamos colher tempestades. Não podemos esperar muito dos outros se, na verdade, não esperamos nada de nós mesmos...

Congratulo-me, no entanto, pelos momentos em que as coisas não foram tão negativas, e em que realmente entraram pessoas na minha nova vida que merecem tudo aquilo que lhes possa dar. Foi com orgulho que pude sentar oito pessoas numa mesa de jantar, para celebrar o meu dia de anos - nada mau para uma miúda cuja vida está um pouco caótica, não é? Ainda bem que estas pessoas existem, e agora vou poder aprender com elas como conservá-las perto de mim.

Tem sido uma viagem incrível.
As mudanças são assim: nunca podemos antecipar o que vai acontecer, ou como vai acontecer. Tudo depende das escolhas que fazemos, e é certo que muitas vezes as fazemos sem pensar, o que resulta normalmente em problemas, ou mais mudanças. Há dias em que dá vontade de carregar no botão do rewind e voltar àquele momento em que a vida se fragmentou em duas. É quando se percebe que não se pode estar em dois sítios ao mesmo tempo. Perde-se o fio à meada, perdem-se as pessoas, as rotinas... e a vida continua, sem se compadecer.

Mas tudo bem. Se for realmente honesta comigo, sei que fiz o que tinha de fazer e que agora está na altura de me mentalizar de que é aqui que tenho de estar. Inteira. E que tenho de refazer a minha vida, sozinha, num ambiente que embora hostil, tem os seus encantos.

Vou-me pôr de pé outra vez, leve o tempo que levar. Força para quem tem de o fazer também.






Tuesday, September 22, 2009

Há dias assim...

Os dias em que só me apetece atirar-me da ponte.
Os dias em que me deito na cama durante a tarde, com o edredon por cima da cabeça, e tento pensar em Zen, para para o fluxo dos pensamentos negativos.
Os dias em que decido que o "não" é a melhor resposta para tudo e mais alguma coisa.
Os dias em que não estou de ressaca, mas parece que carrego o peso do mundo às costas.
Os dias em que me arrependo de tudo.
Os dias em que me sinto culpada.
Os dias em que tenho o coração tão cheio que parece que vou rebentar.
Os dias em que penso em voltar para trás, e nos quais a opção da mudança parece ter sido a maior estupidez da minha vida.

São os dias em que as borboletas na minha barriga deviam levar com Baygon e morrer todas, porque na verdade, o que é que elas estão lá a fazer? São os dias do "ia sendo, mas não fondo", porque eu não sou a Caótica Ana. Sou a Caótica Mariana.

São os dias em que me apetece chorar até não poder mais, mas não consigo porque é tudo tão forte que nem consigo respirar. Algo dentro de mim, não sei bem explicar o quê, transforma-me num lutador de sumo: aguento tudo, e no entanto, estou a morrer por dentro.

Suponho que nunca ninguém verá esse lado meu, a não ser que olhe bem para os meus olhos, esses que nunca mentem. Tudo o resto é pura força bruta.

São os dias em que deixo de acreditar, em que a minha fé vai pela retrete abaixo.

Será que alguma vez vou ser feliz nesta puta desta cidade? Ou voltei porque há demasiado fado dentro de mim?

Raios parta...

Saturday, September 19, 2009

O meu blog-diário

Querido diário:

hoje foi um dia chato. Acordei envolta no mau cheiro das casas de banho dos gatos, com o cão a lamber-me os pés, e pilhas de roupa espalhadas pelo quarto. Arrastei-me até à cozinha para fazer um café, que servi numa caneca que não era lavada há três dias. Depois, abri o frigorífico e apercebi-me de que tenho de ir ao supermercado urgentemente, porque tudo o que tenho para comer é sopa e ovos.

Vesti o fato de treino, fui ao café comprar tabaco e aproveitei para passear o cão. De repente, lembrei-me que vinha cá a casa o senhor da certificação energética fazer uns testes quaisquer, e que não o podia deixar entrar em casa se esta estivesse estilo Jardim Zoológico em dias de chuva. Então, dediquei-me a limpar até o senhor aparecer, por volta da hora de almoço. Quando o senhor se foi embora, deitei-me no sofá a ver o Family Guy e adormeci por um bocado.

Quando acordei, achei que era um óptimo dia para ir ao cabeleireiro fazer uma mudança radical de visual. Claro que isto foi um truque barato para fugir à pilha de roupa que tinha para arrumar, já para não falar na roupa supostamente lavada que tinha num alguidar para dobrar há duas semanas. Lá fui eu remexer nela, à procura de uma t-shirt gira, quando me dei conta de que um dos meus gatos a tinha usado como retrete. É, um dos meus gatos gosta de me avisar que está na altura de mudar o caixote, fazendo chichi na minha roupa lavada. Tive um ataque de nervos e fui a correr para o cabeleireiro. De lá, saí com menos cabelo, menos dinheiro e um penteado novo. Bolas, a minha cabeça ficou realmente mais leve! Se tudo na vida se resolvesse assim...

Bem, era para ter ido tomar café com a minha irmã, mas adormecemos as duas e acabámos por ficar por casa. Eu, os meus gatos, o cão - que, por sinal, foi outra vez à rua quando fui outra vez comprar tabaco - o Facebook e um filme pipoca no Hollywood. Para me mentalizar de que tinha de fazer a cama de lavado, arrumar a roupa e lavar aquela que o meu bichano sujou, bebi mais um café numa outra caneca que já não lavo há 3 dias. Amanhã, tenho mesmo de lavar a loiça... que chatice!

Agora, vou ficar a fazer horas porque quero ver se ainda lavo duas máquinas de roupa, já que o meu roupeiro está a ficar um bocado vazio de modelitos. Vou ouvir um bocado de Arab Strap, ponderar sobre os factos da vida, e quem sabe, escrever qualquer coisa realmente substancial.

Vida de miúda solteira é pior que vida de gajo solteiro, está visto...

Wednesday, September 16, 2009

Segundas Vidas

Terminei agora um DJ set no Second Life.
Isto é daquelas coisas que requer explicações da minha parte, explicações essas que agora não me apetece muito dar. Em poucas palavras, todas as terça-feiras faço exerço uma actividade online para todo o mundo, que em Lisboa me vedam, porque não pertenço a nenhum clube restrito de pseudo-intelectuais.

E há um mundo virtual, onde pessoas de todo o mundo podem deixar a sua pele real para trás e ser simplesmente o que querem, sem grandes regras ou obrigações. O Second Life seria o mais próximo daquilo que eu imagino como sendo uma sociedade anarquista, a sociedade em que eu gostaria de viver.

Não digo que ser DJ seja o sonho da minha vida, mas permite-me comunicar com outras pessoas através da música de que gosto, e aproxima-me de comunidades com as quais me sinto identificada, de uma forma que eu sei que é impossível na vida real. Existem demasiados constrangimentos... se calhar, é por causa disso que nós, seres humanos, estamos cada vez mais isolados...

Criar uma personagem no Second Life e viver essa vida paralela tem-me ensinado milhares de coisas sobre mim. Tenho aprendido a sair da casca, a ser eu mesma, a dizer aquilo que tenho para dizer, e a viver a vida real de uma forma muito mais livre. A maior parte das pessoas não entende como é que um conjunto de bonequinhos perfeitos, operados por sabe-se lá quem e onde, pode interagir de formas tão intensas – ou mais – do que na vida real. Essa foi a permissa que me intrigou e que me levou a entrar nesse mundo.
E, contra o meu sentido de racional, fiz amigos de carne e osso, apaixonei-me, ri-me, chorei, apanhei bebedeiras, e conheci pessoas cuja forma de pensar poderia revolucionar o mundo. Na verdade, tudo no Second Life é real, e poderia ser MESMO real se alguém cá fora estivesse disposto a escutar – se ainda houvesse humanidade.

No entanto, somos forçados a ser escravos das conveniências, e a calar-nos, porque somos números. Em certa parte, a nossa humanidade está contida em bonecos feitos de pixels...

O meu próximo desafio na vida real: encontrar um dance pole na vida real, e dançar nele até cair para o lado, com toda a gente a ver.

Tuesday, September 15, 2009

Rometa e Julieu

Era uma vez uma estória de amor que comeca pelo fim.
Encostada ao peito do seu amado, Rometa pensava com afinco se realmente amava aquele Sansão que lia Virgina Woolf em voz alta, sem conseguir apreciar nem uma palavra. Inspirou o seu cheiro a cavalo e sentiu as entranhas revolverem-se. Seria o medo do compromisso, ou seria ele realmente um burgesso? Assim, ela enunciou a frase que faz a maior parte dos homens tremer de medo:
Amor, temos de falar...

Julieu era um homem alto, gordo e descabelado. Os seus arrotos ouviam-se a meio quilómetro de distância, e ele tinha orgulho em demonstrá-lo em restaurantes de cinco estrelas. À primeira vista, ninguém diria que este Gerard Depardieu à portuguesa era um dos mais conceituados – e multifacetados – artistas plásticos do país.
Rometa era uma rapariga magrita, de olhos cor de avelã rasgados e penetrantes, que trabalhava como estivadora num centro comercial. Fora por acidente – ou sorte, nos tempos que correm, já nem se sabe muito bem... - que tinha arranjado esse trabalho. O que ela gostava realmente de ser era escritora, mas ninguém a levava a sério.

Rometa e Julieu conheceram-se num bar de má fama no Cais do Sodré: ele gostava de mulheres da vida e de coca; ela precisava de uma bebida forte quando saía do trabalho e de ver gente normal, para se sentir viva. Rometa levava uns vodkas a mais na bagagem, e ao ver Julieu snifar uma linha com uma nota de 100 euros, umas mesas à frente, lembrou-se que já o tinha visto na televisão. Por isso, levantou-se, e bamboleando-se, sentou-se na mesa dele. Rodeado de putas, que fugiram quando Rometa se sentou, Julieu esbugalhou os olhos e fitou-a de alto a baixo. Ela sorriu-lhe, um sorriso que só os demónios sabem fazer. Foi tudo o que foi preciso para que acabassem enrolados durante mais de 10 horas seguidas em casa dele.

Recuperando da ressaca, já em casa, Rometa olhava absorta para a parede da sala e não conseguia pensar. Decidiu que talvez devesse deixar de beber tanto, e quem sabe, tentar encontrar um sentido para a vida; ser mãe, arranjar um emprego decente, ficar em casa a ver televisão em vez de ir para bares de má fama procurar sarilhos. Fora mais uma das estórias para contar no livro que nunca iria escrever...

Julieu, por seu turno, estava fascinado com aquela odalisca do povo, que sem dizer uma palavra, arrancara o animal que havia nele. Aquela mulher havia de ser a futura mãe dos filhos dele...

Voltaram a encontrar-se para jantar – Julieu pagava, como um cavalheiro. E como o cavalheiro que era, tentou não comer de boca aberta, nem arrotar, mas a sua natureza era demasiado forte. Rometa, como todas as mulheres, não comentou, mas registou o acontecimento na sua lista de razões para não se envolver mais. Contudo, horas depois, viu-se com o robe dele vestido, em cima de uma poltrona, fumando um cigarro pós-coital e vendo as luzes de Lisboa, ao som de Django Reinhardt.

Ela pensou: o amor deveria ser o sentimento mais simples do Mundo. Não devia ser condicionado por aquilo que os outros pensam ou dizem, nem por aquilo que nós pensamos. Deveria ser algo natural, animal, sem explicações nem razões. Eu não devia ter medo, as pessoas não deviam ter tanto medo. No entanto, estou aterrorizada, apavorada. E este medo vem do facto de eu não amar este homem.

Julieu, no quarto, ressonava. Sonhava em fazer um filho a Rometa e fugir, voltar a aparecer, fazer-lhe outro filho, e fugir de novo. Essa era a relação perfeita entre homem e mulher, até que a morte (ou uma brasileira) os separasse. No seu sonho, Rometa estava sempre à sua espera na cama, de pernas abertas, pronta para mais uma. E depois dela, havia outra amante, noutra ponta da cidade, exactamente na mesma posição. E mais outra... Contudo, seria sempre para Rometa que ele voltaria, porque a amava.

Ao nascer do sol, Rometa vestiu-se, saíu de casa de Julieu sem olhar para trás e prometeu-se encontrar um sentido para a sua vida sem ele. Nem que tivesse de descarregar camiões até ao fim da sua vida...

Meses depois, Julieu apareceu. Haviam concordado em manter uma cordial amizade, que ele constantemente desafiava, contra os esforços diplomáticos de Rometa em manter o nível. Nessa noite, Rometa não resistiu e percebeu que Julieu era o homem da sua vida. E disse-lhe que o amava.

Prometeram tentar durante uma semana serem um casal normal. Ele ia ter a casa dela à noite, jantavam, viam televisão e depois faziam amor. Ao fim de dois dias, Rometa deu-se conta que tinha de mudar os lençóis da cama sempre que ele lá dormia; a tampa da sanita estava sempre para cima; a banheira ficava cheia de cabelos e de gordura depois de ele tomar banho.

Ao sétimo dia, Rometa estava aninhada em Julieu, que lia Virginia Woolf em voz alta, sem conseguir apreciar nem uma palavra. Vencendo o medo de ser tornar invisível e de nunca encontrar um sentido para a vida, ela murmurou:

- Amor, temos de falar...